15 de jun. de 2009

traga as pedras e sedimente-se em mim

Ele partiu mais uma vez, atravessou o oceano rumo a uma travessia na terceira margem do rio. Onde os pés estão sobre as pedras. Hoje ele está na casa do pai, mas o pai não está mais lá. Ele caminha sobre as pedras. Posso ver seus movimentos, seus passos arriscados e certeiros, a dor em seus pés, calejando-se com as pedras e com a água fria. Até que ele escorrega em uma das pedras e se molha, sucumbido pelo cansaço deixa-se molhar e a água gélida lavar seu corpo inteiro. A água aos poucos esfria o corpo quente e ele se acostuma. E vem o prazer da água corrente. E ele se levanta, prossegue a travessia. Com o vigor que o choque térmico traz, ele olha atentamente as pedras no fundo e vai colhendo, uma a uma, os fósseis afetivos. As lágrimas quentes o aquecem e os soluços fazem o corpo reverberar a dor nos pés. A água que escorre dos olhos também lava. Ele atravessa o rio, colhe as pedras que lhe massagearam e atravessa para o Rio. Eu peço a ele para que chore. Eu peço a ele para que volte, para que traga as pedras que colheu e eu lhe darei meu corpo para repousar, para aquecer, para percorrer, sedimentar.

4 de mai. de 2009

breve comentário sobre o que não se pode contar

Há uma cortina verde, uma manta colorida sobre o sofá, alguns vasos de plantas, almofadas com flores. Uma mesa e quatro cadeiras. As coisas elétricas que fazem uma casa qualquer funcionar e uma luminária de pé. Um corredor repleto de prateleiras repletas de livros. Um cômodo para um escritório provisório. A cama de casal, os criados-mudos e barulhos vindos da São Clemente um pouco distante.

Objetos, restaram poucos. Abandonei vários que traziam memórias indesejáveis e deixei espaços abertos, gavetas vazias. Há o que entrar, aos poucos. Aproveitei a mobilidade dos móveis e deixei as madeiras pesadas para quem tem força de carregar peso inútil. Eles já se movimentaram suficiente em minhas mudanças passadas, já trouxeram passados antigos e o que eu quero agora é um presente fresco.

Azuis são os azulejos do banheiro. O espelho grande de moldura de madeira clara sobre a pia me mostrou hoje a beleza da imagem mais cotidiana hoje em dia. Era eu e ele, abraçados, olhando para si. Se perdendo na fumaça do vapor vindo do chuveiro de água quente. Olhamo-nos a fio. Até o carinho maior desfazer a imagem.

E banhamos, e tomamos café, e o dia se passa, e a noite chega, eu dispersa nos afazeres da vida de todas eu, ele atônito com os prazos, eu que acordo sempre depois, ele que dorme sempre antes, vivemos dias cruzados em casa, além de toda saída, aquém de toda chegada.

27 de fev. de 2009

Abri a porta do apartamento e o silêncio daquela nudez derramou a calma sobre mim. As paredes brancas refletiam toda a luz que atravessava os vidros descortinados e eu, igualmente radiante, penetrava vagarosamente naquele esqueleto.

Com pequena dificuldade abri as janelas que estavam levemente emperradas pela pintura nova; abri as portas dos armários, as gavetas; testei todos os interruptores, mesmo quando não havia lâmpadas; abri todas as torneiras e o chuveiro. Deixei correr um tempo, o vento, a água, eu ali dentro.

Entrava em cada cômodo e a imaginação não precisava mais ter pressa. Agora há tempo de construir. Me gastei ali a ver o que se podia ver. As paisagens pelas janelas, alguns resquícios dentro dos armários, dois espelhos, o desenho dos tacos. Me dediquei àquela estrutura, às minúcias despercebidas na pressa do sim.

Sim, é este. Este o esqueleto que escolhemos rechear com nossas vidas, odores e ruídos. Saí de lá com uma pequena lista de coisas a comprar e consertar, sabendo que não serão os móveis e objetos a transformar aquele monte de paredes brancas em uma ruína.

A carne, nossa, suada, a exalar na história por vir neste cenário suas possíveis memórias. Espero o homem que cuida do coração de seu pai cruzar o atlântico para fazermos nossa primeira travessia. Passamos de um lado para o outro, para o lado do outro. E vamos amanhecer juntos.

3 de fev. de 2009



Deito na cama e pego o livro para ler. Ao lado ele dorme, o corpo imóvel e suado pelo calor do verão. Olho devagar para esse homem e penso nos dias por vir, construo nossa casa, nossos filhos, nossas noites e dias, nossos invernos. Cometo esse equívoco natural da imaginação – ou, me rendo a meus desejos, os mais triviais e tangíveis.

Toco sua pele branca e perco o tempo a contar suas pintinhas, a fazer redemoinhos com dedos em seu cabelos pretos e brancos, a olhar bem de perto como cada pêlo de sua barba nasce para um lado e para outro.

Levanto para buscar um copo de água gelada e atravesso a casa, olho para o lado e as duas portas fechadas me lembram delas, as meninas que não estão em casa, eu não sei onde estão agora. E faz tempo que não sei. Desde que enveredei pelo corpo dele o meu se destacou como um decalque dessa casa.

É como se eu ouvisse as coisas de longe, de muito longe. Um barulho de quintal, de música, risos, conversas, passos corridos. Vindos dos quartos, trocados pelos quartos. Deste aqui, não há o que dizer. Não posso dizer. Não sei dizer. Preciso estar inteira e completa nesta cama, deste jeito quase equivocado que sei ser.

Mas precisa ser assim, de momento. Como me disse um porteiro quando perguntei se havia apartamentos para alugar. “De momento, está tudo ocupado”. De momento, estou. Talvez me machuque esses ruídos vizinhos, parecem muito divertidos. Talvez eu as machuque com os meus, parecem muito íntimos.

Imensamente, meu corpo deseja a harmonia dos ruídos. Talvez, o silêncio.



para Maria

16 de dez. de 2008

duas cartas e o tempo

minha mais que querida,

desculpa tanto sumiço e silêncio. os dias, desde a última vez em que te vi, foram intensos, plenos, quase violentos. pois viajei, viajei, viajei. deveria ter contado a quilometragem do meu ano. tanto ir e vir, essa vida cigana, a vontade de colocar o corpo numa casa, as frustrações amorosas, e agora estou aqui, a escrever-te.

sinto saudade.

parece que quando sentimos saudades de tantas coisas, vamos aprendendo a viver mais longe de tudo.

é isso.

***

pois agora estou no rio. vim pra cá nos finais de setembro, primeiro pra ficar de hóspede por 2 meses na casa de uma amiga e entender se gosto ou não daqui. o amor acabou - o amor que fora mal vivido por um ano - e eu então estava na cidade do amor que perdi. amor pequeno este. mas era amor, e doeu. procurava também o fio da história a ser contada, o meu filme que no fundo acredito um livro - tenho encontrado lentamente quem é a mulher que anda por aquelas ruas de lisboa. não foi nada fácil encontrá-la, mas eis que hoje, no almoço com um amigo, eu entendi um pouco mais sobre ela, essa ana. então - entre ficar e voltar - fiquei. agora moro com paula e maria. você conhece a paula. tenho já almofadas coloridas e um quarto a fazer de meu. não sei o que virá pra mim desta cidade, tenho medo de que venha o insuficiente, mas agora estou cá. ao menos é uma casa, provisória que seja.

***

não sei o que vou fazer e procurar e querer desta vida. agora estou só. uma cidade nova, pessoas novas que aos poucos aparecem na paisagem daqui, uma história por terminar (mais um mês de prazo) e a vida.

***

e você, por onde anda, como anda?

sabe o que eu queria muito de você? sua tese. por acaso você a tem em pdf? preciso lê-la, sei que preciso. 

dá-me afeto.


sinto imensa saudade. 

um beijo desta cigana que não a esquece,





Por favor, não se perca! 

Eu adoro você e, por isto, não te quero tão longe.

Sinto muitas saudades, nunca deixo que muito tempo se passe sem que um pensamento seja para você.

Mesmo que, mesmo que.

Agora a chuva chega e aqueles de longe ficam mais presentes.

Claro, te mando o pdf.

Carol querida, sinto sua falta por estas Minas, com estas missões a cumprir.

Estou feliz que você esteja aí com a Paula. Tenho seguido os passos dela.

Por aqui como sempre a solidão, o silêncio e a filha que cresce, cresce.

Se vier para o Natal liga.

Muitas saudades.

Feliz por ter notícias.



(para a giovanna, para os amigos de longe, os de perto, para os amores perdidos e os que virão. um ano irrecuperável, um tempo irrecuperável, e uma certeza qualquer. seja numa cidade, num tempo fixo, seja em pleno vôo. há de vir algo. há de vir.)


14 de dez. de 2008

construção de ruína III (encontro e reencontro)


Hoje conheci seu pai. Uma tarde agradável, a céu aberto, oscilando entre o brilho dos raios de sol e o cinza das nuvens carregadas, como de fato é a vida. Gostei de sua voz, de seus suspensórios, de suas suposições, de seus olhares e possíveis sarcasmos.

Então você gosta dele?
Amo
De verdade?
Muito

Fui ao toilet e quando voltei ouvi a palavra pleur. Falavam de nosso amigo querido, que esconde seus olhos tristes atrás de alguns sorrisos e de um par de óculos escuros. Ele não chorou a perda do pai e eu sentia, naquele momento, a falta do meu.

Você diria que ele é fofo? fofinho?
Ele é lindo
Podemos parecer diferentes mas ele é meu filho.

Era como se ele dissesse apenas “é meu”, sem nenhuma carga possessiva, apenas bastante afetiva. Bonita a forma como ele te olhava, quase lacrimejante. Houve tanto cuidado, palavras afetuosas e carinhos silenciosos. Um reencontro com odor de prazer e orgulho. Um encontro com sabor de carinho e vontade.

De repente ele olhou para a imensa paisagem de Copacabana que preenchia o horizonte e disse que já não estava mais tão bonita quanto há pouco tempo atrás.
Eu disse que era a luz, seguimos caminhando para casa, embora eu soubesse que eram as férias e sua efemeridade. Seguimos caminhando lentamente.

13 de dez. de 2008

construção de ruína II

O peso do seu corpo quente sobre o meu, seus lábios quentes sobre os meus, seus olhos quentes sobre os meus.
Eu chorava. Num arranque repentino e quase inesgotável. Soluçava e não via nada.
Só queria o seu calor. Me fez chorar o seu calor. Um medo infantil de acordar e não estar mais ali.
Às vezes abro os olhos no meio da noite para te ver.
É que eu te amo tanto.

10 de dez. de 2008

Pequeno inventário do amor #04 - O lugar do outro

Disse-te outro nome – o nome da outra pessoa. Você disse que era o nome de homem mais bonito e que teu filho se chamaria assim, o meu nome inventado. Você jamais pronunciou este nome enquanto estivemos juntos, como quem soubesse da mentira que ele guardava.

Tuas mãos são grandes e seguravam a grade da varanda enquanto o dia amanhecia sobre nós. Era segunda-feira. Eu mal sabia o teu nome. No pescoço, uma medalha de Santo Antônio. Disse-me qualquer coisa sobre ser filha de um português.

Bonitas as tuas mãos.



9 de dez. de 2008

Pequeno inventário do amor #03 - Violência

Você disse que era uma violência fazê-lo conversar – eu imersa no seu silêncio – era uma violência pedir que explicasse qualquer coisa, que explicasse que amor era este, então.


Você me mata.



8 de dez. de 2008

construção de ruína

Começam a surgir os pilares. Como o princípio de tudo, o verbo. Iniciar, esse, que fez tudo gritar a urgência inexistente. Buscar, outro que traz imediatamente um antônimo, deixar. Um corpo não pode ocupar dois espaços ao mesmo tempo, há de se escolher – o meu corpo quer colher.

7 de dez. de 2008

Pequeno inventário do amor #02 - São Paulo


Eu olhava-o dormir com os braços entre os meus

os dedos, olhava o pequeno machucado no seu dedo, a janela aberta para o dia, sua respiração lenta e pesada naquele começo de tarde de uma terça-feira. Dormimos por vinte minutos – eu não dormia, guardava aquele instante com os olhos, era dia, eu gostara daquele homem alguma vez no passado e agora era somente a pele branca e as mesmas palavras que se perderam no tempo.


Depois
a cidade das águas.



26 de nov. de 2008

Pequeno inventário do amor #01 - A constelação das Três Marias

No braço dele havia a constelação das Três Marias, eu tocava-a com a ponta do dedo. Tento me lembrar dos detalhes perdidos. Esqueci muita coisa, jamais do nome dele, que pra sempre será pronunciado em segredo – na minha boca – o gosto do nome dele.

 

A orelha esquerda encostada às minhas costas.  

- Teu corpo tem o som do mar.



( - Parece um búzio, uma concha.)

 



20 de out. de 2008

Os pregos de cobre


A moça entra na loja de ferramentas do centro da cidade e pede 1kg de pregos de cobre. O velhote procura a caixinha pela loja, ela vem empoeirada, e ele tão enferrujado quanto tudo em volta. Ele mostra-lhe pregos de diferentes tamanhos. Ela escolhe um pouco de cada. Enquanto faz a nota da compra, pergunta a ela    você vai construir um barco? E ela, que nem ia, sorri. Acabou descobrindo que eram pro barco, os pregos.


15 de out. de 2008

Ela não existiria se não fossem as palavras. Fui à loja buscar as revelações e ela não estava lá. Vi as fotografias passarem pela minha mão à espera daquela. E ela não chegava. Ela não chegou. Não houve um casal no banco branco do jardim. Procurei algum registro nos negativos, nem sequer.

Esperei poder buscar as revelações embora não esperasse uma revelação inesperada, uma não revelação. Esta que seria nossa primeira imagem tátil virou imaginação, a memória de uma imagem que não existe.

É bom ter essa fotografia em palavras, talvez eu tenha salvado uma lembrança, como aquelas da infância que não sabemos se lembramos pela memória do próprio momento ou pela salvação da imagem.

***

embora assim, seguimos construindo uma nova ruína.
um dos começos com a fotografia.

Era um álbum montado por seu pai, com folhas de papel coloridas, escritos e imagens, colocados de forma carinhosamente não linear e dizendo, apesar das cores, algumas coisas tristes, que eu ainda não sei muito o que é mas acho que vi.
Também havia felicidade. Um menino um pouco sério e um pouco alegre. Não vestia fantasia nem ficava perto de muitas crianças, parecia feliz. Um jovem de olhar um pouco tímido, um pouco malicioso, de jovem. O pai, a mãe, os amigos dos pais, os passeios.

Ver seu passado trouxe ele para muito perto de mim. Cada fotografia me dava instrumentos para senti-lo, a cada gesto mínimo eu me enveredava. As cores quase trazem cheiros.

Ele me viu pequena, vestida de mulher-maravilha, pediu a foto e eu dei. Foi boa essa fantasia de mulher-maravilha. Ele viu as fotos da minha ultima viagem de férias com meu pai e ficou triste.

Eu também fiquei um pouco triste com as fotografias. De alguma forma, o passado é sempre melancólico, mesmo que as fotografias transbordem alegria elas são mínimas sepulturas, e as mortes, mesmo que ínfimas, doem.

***
A imaginação nunca estará condenada à cristalização do tempo.
Algumas coisas merecem esse lugar.

13 de out. de 2008

22 de set. de 2008

a ruína do gato selvagem









Eu andava por alguma ruína quando ele apareceu. Me olhava. Me olhava e me seguiu. Me chamava. Me chamava até que eu me virei, o vi e o deixei. Quis que ele fosse embora e depois eu quis levá-lo para casa, para mais perto mim. Mas tive que deixá-lo ali, nas ruínas, até que ele fosse caminhando para a minha casa. Ele ainda estava imerso nas ruínas, abrigado pelo abandono de outra palavra amor que não a minha. Ele virá mais perto, quando outro abrigo para essa palavra for construído por nós.

(manoel ensaiou construir uma ruína e me ensinou o altar das palavras)

21 de set. de 2008




(pisa, itália. agosto de 2006)



20 de set. de 2008






Há três anos a cidade viu uma grande tempestade. Era setembro, e os carros e as ruas ficaram cobertos de folhas. Tudo parecia em estado de abandono.

A tempestade voltou à cidade. Pedras de gelo, telhas e vidros quebrados, pessoas arrastadas pela correnteza do rio provisório da chuva.

Nestes dois setembros, eu soube que era preciso parar.








15 de set. de 2008

tempo de revelação

Eu espero uma fotografia se revelar.

O casal sentado no banco do jardim.

Eu sou a mulher e essa foi nossa primeira cristalização.

Debaixo das árvores solenes nossos passos nos levavam a lugar algum. Nossas mãos passeavam por entre nós e eu me lembro de segurar seus dedos no instante da foto. Era perto do orquidário. Nos sentamos num banco branco, era branco, eu acho. Nos abraçamos. Eu estava com a câmera na mão. A amiga pediu para tirar uma foto e o fez. Ficamos parados, como se nada acontecesse. Como se nossa mão não estivesse tão quente quanto estava, como se nosso corpo não se adequasse tão bem um ao outro. Como se aquela fotografia não fosse a primeira imagem de um amor, dito não menos solenemente que o silêncio das árvores.

Eu espero essa fotografia se revelar.

31 de ago. de 2008

quando eu era barriga, ou paisagem #03


porque essa fotografia foi encontrada de repente, quando eu resolvi ver os antigos slides do meu pai. quando éramos crianças, isso era o que meu irmão e eu gostávamos mais: ver slides depois do jornal nacional, apagar todas as luzes da casa, o pai com o controle de dois botões na mão, e tantas e tantas imagens que, mesmo repetidas, enchiam-nos de pertencimentos, de família, de memórias que nem eram nossas. a primeira volta do meu pai a portugal. a primeira visita da minha mãe a ny. os primos portugueses, os ainda vivos, os que eu conheceria anos mais tarde. as caixas de slides eram o meu paraíso na infância e, talvez, sabendo disso, é que meu pai aprendeu a controlar essa brincadeira para poucas noites na vida, assim aprendi logo cedo que coisas realmente boas precisam do seu momento certo. como quando minha mãe nos levava pra comer pão de queijo com guaraná caçulinha no seu expedito. coisa baratinha, mas é preciso controlar a alegria dessas crianças, senão ficam mal acostumadas com a felicidade. pois bem. na caixa de slides, agora, descobri a única foto que vi de minha mãe grávida de mim. gosto do vestido dela e ele em nada combina com a mãe que tenho hoje. ela, e o que o seu corpo comportava, são as duas únicas coisas vivas dessa imagem agora. um pouco antes, ela sofrera um acidente de carro e eu fiquei calmamente na barriga dela. não era hora de ir embora, eu precisava esperar e cuidar dela quando ninguém mais da imagem estivesse por perto, tão perto, como aquele dia. eles não sabiam que era uma menina, ali. já faz muito tempo e, tantas e tantas noites, eu só queria essa barriga, e a fotografia no seu mísero instante.

23 de ago. de 2008

paisagem #02



deste lugar eu escrevia uma carta de amor. carta que nunca chegou. deste lugar eu olhava a tempestade, o rio, o barco só. sentia saudade de casa. sentia-me inteira, porém. desejava voltar um dia, e pensava que todas as coisas seriam outras com a volta. daqui de longe, agora, olho as imagens de lá como se não restasse nada. são imagens-memória, perdidas, monumentos de uma passagem breve como o tempo dos homens. monumento de uma carta que nunca chegou. monumento de uma tempestade próxima, que talvez não tenha jamais vindo. e agora eu caminho pelas ruas daqui, desenhando mapas com os pés, sobre o chão antigo dessa cidade. é quase hora de partir e não há nenhum registro de imagem daqui. ainda não foi hora. o primeiro registro dá-se no tempo das coisas, e é preciso olhar atentamente para que uma fotografia não tome o lugar do mundo. não quero um monumento-imagem desta cidade, quero somente senti-la por baixo dos meus pés. e quando eu for embora para não voltar, então poderei fotografar. por enquanto prefiro não tornar registro o que precisa de um tanto mais de vida. tenho um mapa, tenho uma data para partir. a paisagem se constitui de pequenos traços de afeto. sinto saudade daquele barco. e dos olhos que olhavam, calmos, a passagem do tempo.

21 de ago. de 2008

paisagem #01

era noite, e daqui eu não via a lua. ele ligou e contou-me dela. procurei da rua e das janelas de casa. não a via. então uma fotografia quase sem lua chegou pra mim. aquele ponto brilhante no alto, que alguns chamam lua, eu chamei de outra coisa, uma palavra silenciosa. era noite. e agora é quase fim do inverno. você fotografou a espera, ele fotografou o contorno do mundo pelo pequeno espaço de luz. olho agora pela janela de casa e ele não está por perto. é dia, não há lua nem as mãos. mas ficou uma imagem, alguns pontos brilhantes, a escuridão. amor é uma casa vazia.


20 de ago. de 2008

depois de manoel

carolina também esperava
fotografei a espera




18 de ago. de 2008

eu guardo esse retrato em uma gaveta perfumada


paula

era uma vez uma mulher que adorava mudar seu nome e seu rosto. de um dia para o outro, seus maços de cigarro começaram a durar mais tempo. ela gostava dos lábios vermelhos durante a noite. de dia, cabelos puxados para trás, era uma menina. gostava de fotografar as coisas a toa, sua avó nos cantos da casa, o sofá vazio, os quadros na parede. ela sabia olhar as coisas paradas como quem visse, ali, tudo acontecer: o envelhecimento era a fotografia viva daquela menina do dia. à noite saía pelas ruas com as roupas encontradas no armário da sua avó. as rendas formavam o corpo bonito por debaixo da roupa, as meias e as pernas, os gestos longos e femininos, as palavras ditas em voz alta, saindo vermelhas da boca, e as mãos aflitas da mulher que deseja pertencer a alguma coisa. a alguém. essa mulher que deseja o amor, enquanto espera, em silêncio, a imagem por vir. ela não sabe que anda pelas ruas com a leveza das mulheres antigas, as mulheres que teciam longos tapetes à espera de alguém. ela tem um ar de como quem entende que seu corpo é um campo de guerra, um corpo vivo. suas mãos, grandes, passeiam delicadas pelos outros corpos. ainda posso vê-la chegar e ocupar todo o espaço com as palavras altas, os lábios vermelhos, posso vê-la pedir uma taça de vinho e levá-lo à boca, ali, onde as cores das paixões se misturam em meio à sua saliva quente.

carolina junqueira
o amor são duas palavras



17 de ago. de 2008

noite. noite.

horizonte é a cidade em que nascemos. de lá só restam distâncias. estou agora sozinha em casa, silêncio de madrugada na rua e pela janela que não se fecha do meu quarto de hóspede, silêncio em mim por não conseguir acalmar-me imediatamente nas horas difíceis, como em uma mesa de bar. rasguei todo o papel que cobria a mesa e a minha vida, bebi o suficiente pra não ter mais nenhuma vontade de nada, nem de sair dali, de me mover, nem de voltar. queria, por um instante, deixar de existir, na mesa, em meio a papéis e palitos quebrados, em meio à música, às pessoas, em meio a mim. perdi a vontade, paula. perdi. tentei abrir a porta da casa acreditando que seria bom estar aqui, estar em qualquer parte, mas só queria, agora, desaparecer um pouquinho, até que eu pudesse voltar com mais graça, com um pouco mais de calma. não acredito em mais nada. estou fraca. sinto saudade de tanta coisa, de tanta gente, do que me fazia feliz. não estou feliz, paula. durmo nessa vida inventada e é tudo mentira aquela história sobre amor e palavra. 

eu só queria uma mão sobre o meu peito.

16 de ago. de 2008

movimento dos barcos

horizonte sm. 1. Linha circular que limita o campo da nossa observação visual, e na qual o céu parece encontrar-se com a terra ou o mar.

/ a vida é a arte do encontro, embora haja tantos desencontros pela vida / v.m.

15 de ago. de 2008


Quando você abriu a porta e me viu eu ouvi que estava com cara de mulher. Meus cabelos estão nos ombros, de uma cor às vezes parecida com meus olhos, às vezes mais vermelhos, outras mais escuros.

Da aparência imediata, talvez só isso possa ser visto em minha estrutura física. Mas eu entrei pela porta da minha casa não só com os cabelos maiores e mais escuros. Minha coluna anda mais ereta. Meus passos mais calmos e seguros. Meu olho pisca menos.

Esse corpo inesperadamente goza do prazer. É o tempo mais bonito que se tem e pareço primavera. Estou na temperatura mais agradável, minhas bochechas bem vermelhas e meus olhos bem brilhantes.

O dia passa escorrendo por entre a espera pela noite. Os dias passam escorrendo pela espera para o fim de semana. Surpreendo-me com o prazer distribuído em encontros, que se iniciam, acontecem e terminam e já desejo o próximo e ele vem.

A casa tem sido o lugar de passagem, onde eu entro, fico, alimento, durmo e te encontro. Nós que sempre falamos cada uma de nossas casas de cada uma de nossas cidades, agora estamos diariamente tomando chá na mesa da cozinha de uma mesma casa, de uma mesma cidade.

Penso na cidade, penso em você e penso em te mostrar prováveis conchinhas do mar: lembro do Real Gabinete Português de Leitura, da Marina, da feira portuguesa da Cadeg, da Cafeteria Colombo. Esta cidade reserva muito.

Enquanto os dias passam fluidos por entre meu tempo particular de primavera, você percorre vagarosamente a cidade, como é de você. Hoje é sexta-feira, dia branco. Vamos passear.

Todos os lugares serão lugares de passagem para nós (posso dizer nós?). Só o amor não será passagem, é o caminho que se percorre.

movimento dos barcos



(já que não te encontro pelas vias desse jardim, senão pelos braços e mãos no corredor, na sala, na cozinha, na cama ao meu lado a ouvir uma música bonita da regina ou do meu irmão, já que seu tempo agora é amoroso, fluido, o tempo mais bonito que se tem - eu então resolvo somente fazer-te palavras de quase primavera. ainda é inverno, mas não para ti. quanto a mim, acho que ando na estação certa, há uma calma de folhas caídas. encontrei essa fotografia, estava eu sentada diante do tejo e o barco lembrou-me o homem que eu amava. precisei fotografá-lo de forma urgente porque logo ele estaria longe. e então o horizonte ficou torto. achei que ele era mesmo torto. as coisas são o que vemos delas. e só isso. que o movimento dos teus barcos seja mais leve agora, e que as tempestades todas sejam o teu mar amoroso.)

13 de ago. de 2008



(no livro dos aniversários dizia que era preciso aprender a desistir. você leu pra mim. talvez não estivesse atenta ao texto, você se perde um pouco com a leitura em voz alta. eu não me perco. preciso de sossego, você sabe. tenho saudade de uma fonte pequena escondida numa rua de sintra, naquele lugar amoroso. um banco, a água na bica, os olhos perdidos na repetição de imagens. tudo era um bocado mais leve aqueles dias. até mesmo o amor.)

5 de ago. de 2008

2 de ago. de 2008

para o ver(de) selvagem

para que os pés não criem raízes.

para conter

meu corpo anda muito quente, desejo banho frio algumas vezes por dia

31 de jul. de 2008

para conter


22 de jul. de 2008

naufrágio não frágil

Cheia de palavras vindas da TV, ha muito tempo sem descartá-las a este dissimulado papel branco, que sempre me absorve como se eu fosse uma caneta tinteiro borrando o branco limpo que ali estava. De tanto ouvir tantas palavras desconexas durante tantas noites fui perdendo minha prazerosa dislexia datilográfica.

Se não foi também por uma falta de graça que me assolou nesses últimos meses. Nada grave. Essa é a falta, nem grave nem agudo e fiquei eu nesse tom murcho de um cotidiano preenchido por palavras ouvidas de uma TV, ou de um telefone, ou de um DVD, ou de um computador, ou de qualquer outro lugar que não reverbera.

E nada fazia barulho.

E o que estava longe foi ficando invisível.

O que era ruim foi ficando insuportável.

E agora estou com uma atitude de fim na ponta dos pés já direcionados a um percurso que  tem o prazer do som de pisar em folhas secas. Em algum último escrito dizia muito a palavra óbvio, e agora, nada parece mais claro e sonoro do que essas folhas secas. Eu estava cansada não era da vida óbvia, porque ela não é. Cansei da espera e da ausência. Do normal.

E nem mudar de casa havia me trazido motivações superiores. Nós sabemos, até o ditado mais popular sabe. Até o caramujo sabe. A tartaruga.

Enquanto você esteve do outro lado do azul marinho eu estive no meio dele. Enjoei em alto mar em meio a tempestade. Desse jeito literal e cinematográfico. No meio do movimento dos barcos - eu nunca tinha visto tanta coisa se movimentando junto em minha vida - houve um arranjo de cristas de ondas e que somente agora se configura em um naufrágio .

Mas eu não estou a ver navios, eles que se vão.

 

 

 

(eu te cuido, tu me cuidas, sempre – desde a primeira taça de vinho)

 

15 de jul. de 2008

uma carta



minha flor, 

os dias têm corrido num tempo outro. já não sei o que desejar de todas as coisas. e pergunto-me cadê você que há tanto não passa por aqui. sei que seu tempo anda curto, e as noites cheias de palavras vindas da tv. as minhas noites, ainda tento encontrá-las, perdida em mim que estou. a noite sou eu. hoje estive muito agitada enquanto dormia, lembro-me de revirar tudo que estava sobre mim num gesto bruto, brusco, de quem precisa desistir de alguma cosia. pois desisti. e assim tenho levado lentamente essa vida de marinheiro que escolhi pra mim. não sei qual o próximo porto e o que vou lá fazer. mas em certos momentos sinto vivo em mim um motivo qualquer para ir embora.

tenho imensa saudade.

sua,


31 de mai. de 2008

...

porque essa manhã não tem o mesmo cheiro de antes, e já não posso andar amorosamente pela cidade. alguma coisa se rompeu. em mim, na cidade, na casa, no amor. é tudo tão frágil. porque essa manhã trouxe a sensação dos sonhos à noite, e os sonhos, eles não me fazem bem. isso é um pedido. cuida de mim um pouco.

24 de mai. de 2008

rascunho de texto encontrado ao acaso

ontem eu estava a organizar o quarto e todos os papéis. encontrei um caderno antigo com pouca coisa escrita. folheei as páginas para tirar as que não serviam para nada, de quando anotamos qualquer coisa sem importância no primeiro lugar que encontramos. no meio do caderno, estava escrito: amor, estou sem lugar. era o começo de uma carta. a próxima palavra, depois do ponto, está riscada, não sei o que pretendia escrever nem porque interrompi a carta. não sei para quem a escrevia, não sei quando foi isso. talvez fosse para ninguém. mas re-escrevo, agora, as mesmas palavras, para um amor qualquer, fictício, para o amor no qual não acredito mais. talvez fosse justo para ele, ao amor, que eu escrevera qualquer coisa de um abandono. amor, estou sem lugar.

5 de mar. de 2008

casa

19 de fev. de 2008

Gostaria de ser a pessoa que fecha suas caixas para você passar a fita, já que você foi a pessoa, não por acaso, que me viu escolher quais sapatos deixar e quais levar nas duas últimas mudanças. Gostaria de me sentar na sua cama e ver suas coisas entrando em caixas para sair em algum outro lugar. Talvez também não por acaso, me preparo novamente para mais uma dessas enormes empreitadas, que acredito serem mais enormes pelas passagens psicológicas do que pelas tangíveis. Já começo a andar pela casa como que com um último olhar para aquela paisagem interna, fiz até algumas fotografias e por isso pensei que gosto daquela casa. Domingo de anúncios de aluga-se, segunda de dúvidas infinitas e terça plena de enxaqueca - sem dúvida seria assim. Vontade apenas de sentar na cozinha com palavras-cruzadas e café. Daqui a algum pouco terei de colocar tudo meu em caixas, antes arrumar as caixas, e seguir para mais uma morada que até já anseio. Tenho um pouco de preguiça ao imaginar tudo a ser feito mas me encho de entusiasmo quando penso na sensação de construir novamente um espaço para mim - alguns móveis arrasto por anos mas as paredes, o quadro vivo que se põe na janela e o movimento do outro na casa são variáveis absolutamente magníficas que me fazem querer logo e sempre essas mudanças.

17 de fev. de 2008

um momento antes

acendo um cigarro antes de arrumar a última mala. as caixas estão no canto do quarto. o que fica são alguns livros, uns filmes, uma carta de amor do cozinheiro, as toalhas, o calendário deste ano, a cafeteira que ganhei de natal, o etiquetador e tantos afetos. o que levo são as roupas e este corpo que não sabe mais pra onde ir. lembro-me de repente na cozinha, enquanto lavo as louças de um almoço feito de ovo e pão - lembro-me de todos os lugares de onde algum dia parti. sempre esse mesmo sentimento de não pertencer a lugar algum quando preciso arrumar as últimas coisas. deixo aqui um amor que não aconteceu, deixo algumas amizades que não vingaram, e tantas outras cheias de carinho. volto logo para a primeira casa - talvez a segunda, mas minha mais remota memória de infância não se lembra daquele lugar anterior. é, é a primeira, onde nasceu meu irmão. só a partir do nascimento dele eu me lembro de alguma coisa. e então volto às minhas caixas e preciso de fita grande para fechá-las e preciso de um amigo para me ajudar a transportá-las e preciso me concentrar nos meus afazeres para não me perder em tantas outras coisas que não acontecem. não estou triste nem reavalio mais o porquê dessas escolhas sempre incertas. tudo bem, já que é preciso ir - já que em algum momento eu acreditei que era preciso - então eu vou. levo o livro do fernando pessoa. levo a promessa de que um texto sairá no fim. não sei se volto.

9 de fev. de 2008

she's leaving home

o quarto ainda está em ordem. logo estará cheio de caixas pelo chão, roupas sobre a cama, livros desorganizados sobre a mesa e a vida por levar adiante. não sei por onde começar, se vou atrás das caixas no supermercado, se convoco amigos para a empreitada, se faço um trabalho solitário e cheio de memórias ou se simplesmente vou embora sem prestar muita atenção nisso tudo. há um ano eu fui embora da minha casa. passei um dia no rio com você, fomos à praia de dia e à noite bebemos champagne. no dia seguinte eu chegaria na minha casa nova - embora nunca a tenha chamado verdadeiramente de casa. eu vim atrás de um homem, mas acreditava que era atrás dos meus planos que eu estava indo. tantas vezes quase fui embora por causa deste mesmo homem, que fazia a cidade ficar mais triste pra mim. quando cheguei aqui, na rodoviária, duas malas e o medo de estar completamente equivocada. não estava. o quarto ainda está em ordem, mas meu coração está aflito. às vezes me pergunto muito seriamente por que inventei de ser assim, por que inventei que gosto de ser provisória se na verdade eu só quero é me fixar em algum lugar. e por não conseguir, e por ser sempre tão aflita, eu viajo e me mudo e grito de solidão todas as vezes e tenho banzo e a vontade de sempre ficar na hora de ir embora e assim vou construindo qualquer coisa de palpável na minha vida. mas é hora de não pensar muito e arrumar as coisas dentro das caixas. sim, os cômodos servem para acomodar, mas meus pés andam perdidos pelo apartamento. tudo o que faço de cotidiano, como abrir o armário, pegar água na geladeira ou lavar a roupa, eu faço com o sentimento de última vez. sei que me apego demais às coisas perdidas, mas é assim que aprendi a desenhar meu percurso no mundo. ouço uma canção dos beatles vinda do prédio ao lado, é noite de sábado, decido com uma amiga se bebemos cerveja na rua ou se ficamos em casa. o mundo está tão no lugar hoje e o coração tão aflito todos os dias.

8 de fev. de 2008

30 de jan. de 2008

encontro-me na fresta do meu quarto

meus dedos por entre seus cabelos

Já me acostumei com a mesa de trabalho bagunçada, com papéis aparentemente espalhados e bilhetes dispersos. Me acostumei a arrumar a cama e levar copo de água para o criado antes de deitar. Acostumo a pequenas faltas de organização no meu quarto. Essas ocupações e disposições de coisas ao meu redor me fizeram agora pensar no amor e no desejo. No amor forte corrente que embaralha a vista e aperta o ventre no desejo perene latente que faz revirar o corpo solto na cama e colocar a mão entre as pernas apertadas. Na falta de lugar além da quina. O amor e o desejo que me vêm ora fundidos ora em contra mão e que são eles que me trazem algum preechimento entre essas paredes do apartamento. Só penetro bem algum espaço, e principalmente este meu, no impulso do sentimento e sem ele ao invés da leveza confortável clamada por alguns sou solapada por um desatino.
Penso isso pensando em você, que de uma viagem de descanso vive em surpresa um desconforto desamparado. Das mãos quentes correndo pelo corpo elas foram parar em suaves toques de acalento. Penso em você vagando por um apartamento que não seja seu e embora até o repouso seu corpo se levante e caminhe por aí alguns passos eles não estão vagos no ar e nem serão percursos perdidos. Os cômodos foram feitos para acomodar e seus passos que eu imagino estão sim indo ao encontro. Não me agrada este tom profético, mas tenho essa sensação.

11 de jan. de 2008


Eu quis voltar o mais breve possível. Novamente aquele desentendimento. Deixar os lugares na tentativa de deixar neles o vazio. Chegar no outro e trazer o vazio. É certo que vazias estão minhas mãos e aflitos os dedos. Trago no corpo uma porção de vontades e a cabeça constrói uma âncora que torna cada passo impossível.
Tenho vontade de bom humor e disposição. Cheguei em casa e embora houvesse uma lista de coisas a fazer não soube dar início a não ser a um cigarro após o outro.
Mas será preciso desancorar. Desatar os nós entre os dedos. Pentear os cabelos e prosseguir ao início do ano e à volta para casa. Qualquer início não mostra o fim.
Terei de adentrar mais uma vez.

9 de jan. de 2008

da alteração do espaço # 02



não sei se é da cidade ou de mim que estou cansada. mal posso respirar à noite quando apago as luzes. quero ir embora de novo.

30 de nov. de 2007

Quanta ingenuidade isso de deixar tanto tempo de pensamento gasto com o gosto dos outros pela minha persona. Justo eu, que nunca fui dada à creditar opiniões alheias nem sequer quando se tratam dos mais objetivos e factuais assuntos, caí na armadilha criada por uma entre tantas inseguranças que emergem do mais subjetivo assunto que é a personalidade.

Nao que tenha sido a primeira arapuca. Se às vezes na vida a gente deixa de ser uma pessoa muito gargalhante falante gesticulante e inverna numa atmosfera pré dilúvio, neste caso, pós dilúvio, é natural uma reserva. Aliás, o que andei pensando desde então é que qualquer, mais qualquer mesmo, atitude ou comportamento é natural. Natural até mesmo o incômodo com alguns quesitos ou pré requisitos não correspondidos que suponham de nós.

Tudo tão natural e tudo tão óbvio. Nao consigo deixar de lado essa impressão das coisas mundanas.

Volta, um minuto.

Não sei por que cargas d’agua ter ouvido opinião-como-eu-sou-e-como-eu-deveria-agir me deixou pensando que eu era daquele jeito mesmo e deveria ser de outro mesmo. Eis a armadilha da insegurança. É que quando a gente ouve frases contundentes dizendo coisas brutas, talvez a gente acredite, pela maldita força da palavra. Mas aí vem o vento, o tempo, o movimento, o pensamento e coloca as coisas em suas dimensões sem o peso da surpresa do ouvido.


Acho que foi isso que sucedeu.

Penso que devo parar de escrever porque aprendi na faculdade de merda de jornalismo que textos para internet dever ser curtos com frases curtas. Sim, este texto vai para o fundo do mar da internet, mas por acaso, só porque eu não tenho mais meu analista e resolvi que estas borrifadas no “papel” podem me ajudar….

Prosseguindo então.

Me deu cansaço, físico, bobo, nada psicológico, desses que dormir descansa. Andei hoje o dia todo, comprei 3 calças pretas, para tentar me vestir melhor e parecer mais executiva, no sentido verbal da palavra.
Uma amiga um dia fez meu mapa astral e disse que quase todos os meus pontos estão no elemento ar, de forma que por isso eu seja uma pessoa de muitas idéias muitas idéias e pouca prática. Sim, isso que não foi uma coisa que uma pessoa disse, mas uma coisa que está escrita nos astros (são maiores e bem mais antigos que as pessoas) posso concordar.
Não sei se uma porção de calças pretas podem me ajudar em alguma coisa. Até acho que não, mas vamos lá, um dia calça preta, no outro caneta dentro da bolsa…
Caneta eu já levo, então pode ser algum outro objeto simbolicamente de acuidade, seja lá…

11 de nov. de 2007

pode entrar

Me disseram ontem que sou uma pessoa fria. Eu cortava os cabelos dela enquanto disse. Meticulosamente arranjava a tesoura entre os fios e buscava uma nova forma para aquele emaranhado negro, liso e robusto. Tirava as pontas do cabelo gastas pelo tempo dessa mulher que demorou a me dizer qual teria sido a dificuldade na lida comigo durante um trabalho. A distância e frieza, disse-me que pareço não me envolver com as pessoas e que a presença delas parece não me atingir em nada. A distância penso ser justamente devido ao tanto que a presença delas me atinge, se não atingisse estaria eu ali fluentemente imersa nas relações corriqueiras. Mas não sigo essa possível fluidez e tropeço nas minhas próprias pernas ao percorrer o caminho dos encontros. Não desfruto de uma grande simpatia e tão pouco solto palavras a desenvolver discursos imediatos. Esbarro no desconhecimento. Sinto de fato um fosso entre eu e essas pessoas que se põe diante de mim e há. Até dói. Posso tentar esticar um pouco mais os braços para as tocar e tirar do bolso uma meia dúzia de palavras que enredarão possíveis maiores histórias. Creio que independente do esforço em construir relações as inevitáveis irão transpor a minha margem aparentemente rígida e atingir o poço quente que também há. Talvez a margem esteja um pouco mais rígida e o poço um pouco mais no fundo, uma questão de ajuste nas arestas e não de temperatura. Corto os cabelo de alguns queridos, faço massagem, cafuné e enxugo lágrimas, até consigo conversar bastante e fazer rir. Mas é preciso entrar.

6 de nov. de 2007

onde quer que seja

Quase acabo de chegar de lá. Entro nesta minha casa e passando por rastros não meus observo o espaço com algum estranhamento. Passageira será esta também, quase clamo, neste incômodo me guio pelos corredores, no quarto largo todas as coisas. Não há mais, ou ainda, espaço para jogar o corpo no acolhimento.

Ridículo como o sentimento de conforto pode ser tão passageiro. Achava que estivesse deixado lá mesmo um aglomerado de sensações ruins. Mas elas vieram. Não, elas estão aqui. Pareco inventar um lugar para essas sensações, resolvo abandonar este lugar inventado e na nova construção não tarda elas aparecem, com obviedade.
Eu já aprendi que estarei comigo em qualquer lugar inventado e que é bom que eu pare de inventar lugares para abafar aquelas sensações, não tarda elas aparecem.

Fui lá e vi que elas não estão mais lá, eu vi que posso voltar muitas vezes, me sinto novamente confortável nela. Já estão aqui aquelas sensações que me fazem querer abandonar o lugar inventado. Este, agora.

Têm a história da menina que ensinava para as bonecas o que ela – a menina – sabia que deveria saber. Pois bem, eis aqui Paula-professora dizendo para Paula-boneca não mudar-se mais uma vez antes de resolver essas sensações que não tarda elas aparecem.
Sim, entendi.
Mas posso lembrar do cheiro bom que tem lá de uma tardia primavera, um vento com cheiro de dama-da-noite daquela rua, uma porção de risadas e abraços e casas confortantes mesmo que lá não haja mais quarto algum que seja meu. É, estou aqui com todos os meus pertences e esta maldita ou bendita palavrinha vêm me lembrar disso, estou aqui com todos os meus pertences e não são eles que me fazem sentir conforto, são essas sensações de não pertencer a coisa e a lugar algum que não tarda elas aparecem

3 de nov. de 2007

casa

foram 23 anos morando no mesmo quarto, naquela rua calma e antes repleta de casas. agora, a cada ano, sobe um novo edifício rumo à vista das janelas. mal se pode ver o que sobrou das imagens de anos atrás. e o quarto, aquele dentro do qual eu cresci, nem dele restou muita coisa. quase todos os objetos continuam ali, os livros, em especial, que são tantos e diversos e que relutam a sair de lá. não sei se por dúvida ainda, ou se porque não poderia levar somente uma metade e deixar a outra - não sei porque ainda não fui capaz de removê-los todos daquela outra cidade. estive lá há poucos dias e trouxe tudo o que coube em duas malas: as tulipas de madeira, a estatuazinha africana e o azulejo de magritte, ambos presentes de um amor antigo, uma boneca pequena de pano me dada pelo melhor amigo, alguns livros de clarice, pessoa e llansol, um par de bonecos coreanos que meu pai trouxe de uma viagem, ímãs de geladeira para colorir a casa junto com postais de publicidade antiga francesa e cartazes de tango. aos poucos disponho os objetos velhos na casa nova e refaço o que sobrou do lugar passado. em 9 meses, que logo se completam, mudei de casa 5 vezes. em cada lugar inventei uma maneira de habitar uma casa fictícia. porque eu sempre tive a impressão de que cada uma dessas casas vivia à beira do desaparecimento. assim foi. agora vivo entre paredes novas, e organizo tudo o que trouxe para que nesta casa, somente nela, eu possa reformular uma idéia de casa que há muito não tenho. e entre mudanças e amores perdidos, entre objetos antigos trazidos apertados na mala e o livro novo à mesa, entre o pouco tempo que tenho para cuidar dos pequenos cantos e o desejo absoluto de o fazer - tento ocupar um espaço imaginário para não me perder. a cidade nunca estendeu tapetes para os meus pés e eu jamais lhe pedi isso. mas agora, com um pouco mais de mim nela através das pequenas coisas que eu trouxe apertadas na mala, sinto que um pouco mais disso tudo pertence a mim. se antigamente eu roubava pequenos objetos para pertencer a alguma coisa, agora, muitos anos depois, eu trago na mala o que me faz mais inteira nessa cidade.

26 de out. de 2007

de ladrões e crianças

quando comecei a roubar eu tinha acabado de perder tudo. foi logo após meu irmão nascer e de repente eu não tinha mais nada perto de mim, nem mãe, nem pai. pouco importa se isso era fantasia de criança, o fato é que, enquanto criança, eu vivi nessa realidade de ausências e de abandono. eu me vejo, do lugar de agora, sentada ali, no murinho do prédio, sozinha, com a boneca. ela se tornou o objeto mais importante na minha infância, eu dizia que era a minha filha, mas era mentira, era ela quem cuidava de mim, eu a pegava no colo e falava tudo que eu precisava ouvir, como se através de um espelho de ruídos, a minha própria voz ecoasse do silêncio da boneca. e assim, nessa vida inventada de abandono, eu comecei a roubar. batons, canetas, merenda, papéis de carta. borrachas com cheirinho. giz. pirulito. qualquer coisa que estivesse ao alcance das pequenas mãos. mas é preciso dizer: jamais consegui ficar com nenhum objeto roubado, eu sempre era descoberta. não sei se por descuido, por não saber elaborar crimes perfeitos, ou se porque eu sempre deixara pistas. a partir de um momento as pessoas não questionavam mais quem teria sido, já vinham direto na minha bolsinha e descobriam o objeto sumido. mas aí descobri um lugar muito secreto: guardava as coisas dentro da calcinha. e me sentia muito incrível tendo uma idéia tão boa e tão secreta. mas nada que eu roubava me valia de muita coisa. eu só precisava disso: pertencer, através dos objetos pertencidos à força. mas um dia, a vergonha em público: professora, diretora, todas as outras crianças e eu, minha mochila sobre a carteira da sala de aula, e todos os papéis de carta da minha melhor amiga dentro dos meus cadernos. quanto mais procuravam, mais achavam tudo no meio das minhas coisas. eu chorava, com a cabeça baixa e as mãos no rosto. tive muita vergonha e aprendi que não se podia fazer nada pertencer à força. fiquei uma semana de castigo sem poder descer para brincar. mas aprendi, aprendi bem. depois disso tive somente alguns problemas para dormir, e não passou muito tempo larguei a boneca também. e numa lembrança de clarice, e de um conto sobre uma menina e duas galinhas, eu repito: e depois vieram os homens. e o amor. esse desejo estranho de pertencer e não pertencer, de não percorrer caminhos precisos, mas de também querer reconhecer os novos. sempre esse desejo pelo pertencimento, mesmo que seja à força. mesmo que seja falso. desde que, por um instante, a gente saiba que existe um segredo, uma coisa guardada, escondida por mãos pequenas onde ninguém jamais saberá. há como culpar um roubo que não deseja o objeto? todas as vezes em que roubei eu só queria pertencer a alguma coisa. agora sei.

Desejo de Pertencer

Então hoje foi o dia de atravessar a chuva e muitas ruas alagadas. Almoçei uma comida ruim e no meio do bombom da sobremesa veio um pedacinho de plástico, não foi um bom começo de dia-na-rua mas prossegui. Fui aos lugares onde deveria ir entre entradas e saídas de alguns outros, como a livraria. Entrei em uma que parecia qualquer, mas uma sala se abria em outra e em outra e eu nunca havia visto pratelerias tão sub-classificadas assim. Passei momentos até que senti vontade de ir ao banheiro e fui, no das Damas. Parecia um banheiro domiciliar. Havia uma necessaire que não pude me conter e abri. Uma sombra com nome em francês, um batom de cor feia, uma escova de dentes da Air France e o resto não lembro. Pensei que pudesse ter gostado da sombra, mas não o suficiente para pertence-la. Lembrei da sensação de aflição e vitória nos furtos quando tive uma época cleptomaníaca. Recusei, ali. Era velho, usado, não valia qualquer esforço. Imersa nos milhares de livros e prateleiras imensas encontrei um que me apeteceu. Um que consta na bibliografia que você me sugeriu. Destaquei uma tarja grossa que parecia magnética, fui para um corredor de serviço,
olhei ao redor e não havia ninguém, ele valia algum esforço e foi para dentro da minha bolsa. Dois rapazes que trabalham na loja perguntaram o que eu estava fazendo ali, disse que ia ao banheiro, mesmo sabendo que o banheiro não era ali, acho que ele viu, e fui ao banheiro onde ele me disse, não fiz nada dentro do banheiro que eu já havia conhecido, saí e vi um monitor passando imagens das câmeras de segurança, escondi minha aflição no meio das páginas de um livro da Lygia Clarck, vi até o fim, até me acalmar. A todo momento que eu via alguém pareciam esconder um riso, de mim. Dei uma olhadela na porta, não havia ninguém nem parecia ter alarmes. Fui saindo. E comecei a ouvir os apitos no primeiro momento que estava de costas para a loja. O desespero só me fez correr como nunca antes, subi uma rampa em espiral até sair na Av. Rio Branco, por acaso de uma sorte que quase nunca me acompanha, o sinal de pedestres estava aberto, atravessei a rua, entrei dentro de uma banca de revistas, esbaforida e com os olhos muito aflitos, eu imagino, comprei cigarros, o moço da banca me fez lembrar de levar os cigarros, saí e o ônibus 592 estava justamente no ponto. Parecia que era para dar tudo certo. Só tirei o livro da bolsa quando cheguei em casa, pertencendo um objeto que não é meu. Ele não pertencia à ninguém e agora, na cabeceira da minha cama. já lida algumas páginas não sinto culpa. Esse impulso de posse acalentou o desejo de pertencer, não o objeto, mas à alguma coisa. Não queria dizer, mas é necessário, traz sentido. “Arte Contemporânea – Uma História Concisa”, de Michael Archer. Diacho de lugar ainda incompreensível onde quero estar. Muito mais que passar batom vermelho e sombras francesas, coisa que já faço bem com um estojo paraguaio que era da minha avó.

24 de out. de 2007

alagamentos



A imagem da cidade-maravilhosa quando imersa em ruas alagadas por uma tempestade pode ser estranha. Para mim foi correspondente. Acordei hoje e do lado de fora da minha janela ao invés dos raios atravessando a castanheira estava a rua completamente debaixo d’agua. Os buracos que têm nela para escoar a água não deram conta do volume líquido nem da sujeira grossa. E tudo parou de correr para onde devia. Estou aqui. Mais uma vez presa pela tempestade. E gostando de ter econtrado nela uma aliada para o enclausuramento. Penso em deixar para amanhã ir ao centro e ao banco e passar esse dia dedicado ao prazer da chuva, dos chás e das músicas antigas. Reservo-me aos afazeres da casa, sem muito movimento.

Conversava outro dia sobre as pessoas “legais”. Essas das quais todo mundo gosta e faz todo mundo rir. Algumas disseram que queriam ser elas, adoradas. Talvez eu também quisesse. Falei de uma diva, que tinha um lugar tão solitário que ninguém atingia, ela não precisava dissimular sorrisos sinceros nem exalar simpatia aleatória. Descaradamente, falava de mim, pelo caminho de uma outra mulher.

Esse lugar inatingível. Aqui estou. Vasculhando no sótão do ser, tentando encontrar velharias que devem ser reerguidas e escolher as que devem ser estilhaçadas. Sabendo exatamente que essas peças escolhidas não terão destino fácil. Algumas sujeiras grossas difíceis de serem removidas e outras coisas complicadas de serem restauradas. A escolha do destino de cada uma e a preparação das peças para deslocamento. Talvez por estar no sótão gosto da chuva lá fora. A cidade não suporta tanta água. Eu tentando abrir novos escoamentos. Os volumes às vezes são cabem. É preciso transbordar.

21 de out. de 2007

7 de setembro de 2005

sim, me lembro daquela tempestade. nós duas na sala de cinema que alagou, o filme parou e pediram por favor que saíssemos antes que houvesse um curto-circuito no lugar. lembra da rua quando saímos? estava toda verde, com cheiro bom, você chorava muito naqueles dias, e então veio a maior tempestade que já vimos, com os carros inteiros cobertos por folhas, tudo verde, com cara de abandono, como se a natureza sozinha engolisse o mundo dos homens, e aquela sua dor. o cheiro da cidade, não me esqueço. tudo parecia abandonado, e nós. acho que depois daquela noite alguma coisa aconteceu. sei que ainda demorou a parar de doer, aquilo que você sentia. mas ali tivemos uma noção clara do tempo, e de como de repente as pedras de chuva destróem o teto do cinema e o filme pára no meio. lembro que havia uma mulher e uma fronteira. foi nesse instante que o filme parou. nunca mais o vi. era o que tinha que ser visto. sabemos.

19 de out. de 2007




Estou dentro de casa e lá fora chove. O dia todo. É bom estar chovendo. Me preserva de qualquer desculpa de não sair de casa. Obrigatoriamente aqui fica acolhedor, teria que ficar. Não sei se está suficientemente acolhedor. Queria estar num lugar alto onde pudesse ver a chuva caindo na sua amplitude, mas daqui só posso sentir um fragmento que cai entre os prédios e do primeiro andar fico mais perto do asfalto molhado do que da água que cai (lembrei daquela tempestade do 7 de setembro de 2005).

Ontem saí a tarde. Fui levar o telefone para consertar e comprei um chapéu, branco, de abas longas e tecido fino. Entrei na loja e experimentei quase todas as opções, decidi virar uma pessoa de chapéu, mas hoje choveu o dia todo e não pude usar meu novo-chapéu-branco.

Voltando para casa caminhei pelas ruas confusas de Copacabana, revoltas de gente por todas as direções e debaixo do chapéu pude sentir o que sou nessa cidade. Uma observadora que sofre por saber da distância entre o olho e o olhado – embora essa distância possa ser corrompida pela correspondência. E esse novo lugar descoberto debaixo do chapéu me parece confortável, pareço escondida e pareço chamar mais atenção. É um pouco como estar em casa nos dias de chuva, um pouco mais seguro.

O chapéu tem um broche de fita preta com um brilhante (falso), como opção para ser usado à noite.

da impossibilidade do registro



e entre ferros e estacas e pedaços de casa - e enquanto ouço frank sinatra - numa nostalgia tão impalpável a mim, em um instante em que nada mais desejo além de ficar sobre este colchão, que é a única coisa que tem no meu quarto, esse colchão grande, onde esparramo todo o corpo nas noites vazias - além de ficar sobre ele e ver um filme de faroeste, conversar à distância com minha mãe ou com um amigo qualquer, contemplar sozinha um amor que não pode acontecer porque ele acabou antes de começar. encontro uma fotografia. um prédio que estava em construção em frente à janela de casa. a casa que não é mais minha. sempre, desde a infância, olhei muito aquela imagem, embora não houvesse ainda nem o prédio na frente, nem as estacas. a árvore ao fundo sempre foi a minha referência para saber se ventava ou não. as luzes de um prédio distante me localizavam o mercado do bairro. e então, dessa janela, eu vi a cidade mudar e me vi crescer entre pegar o banquinho para ver a vista e entre ver uma outra construção obstruí-la. o céu é bonito dessa janela. o meu olhar é míope, sempre precisei chegar perto demais para poder ver. talvez por isso, e pela vontade de sempre encostar a mão nas coisas, é que eu não suporte viver nada à distância. minto - suporto. aliás me reconheço nesse ato repetido de sempre querer a distância, de gostar mais de alguém desde que eu não possa tocar. encontrei a tal fotografia. quando busquei a câmera queria apenas registrar aqueles ferros que por vezes dançavam duros no ar. gosto dos desenhos de estrutura das coisas. quando fotografei o outro lado da rua, minha casa ainda era completa. tudo tem se perdido com o tempo. essa fotografia, para mim, agora é a imagem da noite. não havia perdido tanto ainda. a noite é o que me resta do que se perdeu. foi numa noite que perdi o que mais amava. e essa fotografia não é nada, senão a constatação, mais uma vez, de que tudo tem seu tempo e de que não posso registrar o amor em película alguma.

18 de out. de 2007

da alteração do espaço

não sei se pude intervir na cidade, nem nas suas pessoas. tenho um desejo novo, um nome que me faz querer ficar aqui, agora um pouco mais. às vezes também um pouco menos. vai saber. lembro-me de quando estava no porto e me apaixonei por um português. toda a perspectiva da cidade se alterou. até a língua deles eu podia ouvir sem me sentir tão ausente a ela. eu gostava de ouvi-los, a todos. o sotaque de cada pessoa era a voz do homem que eu desejava. esses cascos de casa, de caixa, esses ferros, estacas, qualquer coisa que se prenda à terra firme, me faz entender que é disso que eu preciso, alguma coisa, mínima que seja, que me faça habitar o lugar. agora sim, habito, embora continue perdida entre ruas e ruas e mim. a saudade de casa é agora só uma palavra, porque já é impossível voltar. nunca se volta - a voz do meu poeta preferido - o lugar a que se volta é sempre outro. e eu nunca mais seria a menina que cresceu dentro daquelas paredes da casa da minha mãe, embora jamais possa deixar de sê-la.

às vezes não sinto saudade de nada.

16 de out. de 2007

a obviedade de um dia não ser igual ao outro



Sobre modificações no espaço a partir da presença das coisas e das modificações das coisas quando mudadas de espaço.


Não sei se ficar. Tenho sido mais dificil para mim do que os lugares, mas espero ir. Deixar de existir em um lugar deixa o lugar e não a existência. Desisto de um lugar mas não des-existo. Os lugares vão ficando dificeis, eu achando que são os lugares e vários achando que sou eu, às vezes até eu, ninguém sabe. Tudo óbvio e de onde eu tiro tanta dúvida?

12 de out. de 2007

dois cafés e cigarros

essa falta, sim, também essa vontade de não ficar, de não sair, uma vontade, entre tantas, de fazer pouco esforço, numa cidade que não é minha, entre pessoas que não são minhas, num lugar alheio a mim, alheio ao meu desejo, mas onde quero ficar. ficar. afinal quero isso.

vejo esse nosso movimento disperso, entre partir e ficar todos os dias, entre essa solidão maior e as pequenas tragédias cotidianas. em meio a tantos afazeres, a vontade de não parar e a de desistir. penso todos os dias em desistir. você pensa? mas daí me lembro que já desisti antes de outro lugar. e talvez a vida tenha sido e continue a ser uma sucessão de desistências que movem meu corpo para algum lugar.

8 de out. de 2007

mãos sobre mesa para começo



a princípio aleatória esta imagem para teste. é que foi tão imediata que pareceu qualquer. o que está ali a volta é a centenária cafeteria colombo. esses lugares de café e fumaças trazem tantas vontades e tantas saudades que agora já penso que escolhi essa fotografia por ser quase uma epígrafe da nossa relação. nossas palavras regadas a cafés me fazem uma falta no maior sentido da palavra falta. vontade de fazer um parêntesis no dia e correr para o conforto do olhar conhecido e dos frouxos de riso, que só é possivel no conhecimento íntimo. outro dia pensei, há quanto tempo não tenho um frouxo de riso! deve ser o mesmo tempo que não fico muito perto de quem me sabe e eu sei e eu gosto e me gosta. sinto tanta falta.